(Eu) Ainda estou aqui
Confesso que eu estava mais investido no Oscar desse ano do que deveria. Não sei explicar a razão. Talvez seja porque eu me apaixonei pelo Cinema bem na época da retomada e faltava um Oscar para coroar aquele período1. Talvez seja pelo fenômeno Fernanda Torres, que chamou para si a responsabilidade de ser a cara da campanha do filme. Talvez seja porque eu adoro o livro do Marcelo Rubens Paiva. Mas, em um sentido mais real, eu estava investido porque “Ainda estou aqui” é um história de uma mulher que se recusou a ser destruída pelo Regime mais selvagem que nosso país já sofreu2.
Se você teve alguma interação comigo por mais que quinze minutos, você sabe que eu abomino as Forças Armadas Brasileiras. Em primeiro lugar, pela ditadura irracional e maligna, que ceifou várias vidas e endividou o país de tal forma que nos tornamos lacaios do capital internacional. Em segundo, porque eu tenho zero respeito pela mentalidade de caserna e o emburrecimento que ela promove. Em terceiro, porque os militares, como a gente descobriria nas eleições passada, acham que a Democracia é um benefício, quase um presente, que eles dão aos civis, revogável a qualquer tempo. Os verdadeiros donos da Democracia são eles. Por isso o Brasil tem, proporcionalmente, mais Generais que os EUA. É muito cabide de emprego para pendurar muita farda. Sempre lembrando que, desde 1947, o brioso Exército é especializado em matar brasileiros e raramente faz operações militares fora do nosso País.
Desde 2016, os militares nos tiraram muito. Foram ativos no golpe contra Dilma, embora a presidente sempre tenha tentado ter boas relações com os briosos fardados. Em 2018, tivemos, até aquele momento, a ameaça mais séria do Exército à Democracia:
Era a véspera do julgamento do Lula e, como qualquer um pode ver, o valente comandante do exército basicamente ameaçou o STF a condenar o ex-Presidente, o que de fato ocorreu em uma votação bem apertada. Em uma corja de traidores da pátria, Villas Boas se destaca como o mais traíra de todos.
Após a eleição do sindicalista militar Jair Bolsonaro, tivemos uma espécie de segundo governo militar. Havia 2.765 membros das Forças Armadas nos postos no Executivo federal em 2018. Em 2020, número saltou para 6.157. O “governo” Bolsonaro foi um governo de militares para militares. Deu no que deu e o que deu foi muito ruim. Não vou falar sobre o 8 de janeiro aqui. Quem viveu, lembra. Lembra do clima de Guerra na minha amada Brasília. Lembra da legião de fanáticos religiosos destruindo nossa propriedade pública. Lembra de um plano de golpe tão burro que apenas mentes encolhidas e brutalizadas pela mentalidade de caserna poderiam arquitetar.
Corta para 2024, vinte seis anos após a última indicação do Brasil ao Oscar de melhor filme internacional. O último filme indicado3? Central do Brasil. Talvez você conheça o diretor dele… um tal de Walter Salles. Ele ainda está aqui. Nesse meio tempo, o cinema brasileiro virou uma confusão: temos filmes bons, mas também temos peças de propaganda evangélicas e comédias ofensivas4 lucrando para caramba. O cinema também virou alvo de perseguição política por, em essência, ser ideologicamente contrário aos “valores” do Exército/Governo. Talvez uma nova Retomada seja necessária.
Fernanda Torres, que se tornou Eunice Paiva em uma atuação milimetricamente calculada e construída com a precisão de uma mestre, virou um ícone nacional. Ganhou o Globo de Ouro em um momento lindo, no qual a atriz Tilda Swinton5 se emociona ao ver a colega brasileira ser laureada. CPF para Tilda Já. Fernanda capitaneou a árdua companha internacional do filme. Com charme, graça e bom-humor, que apenas a Vani dos Normais poderia ter, ela conquistou o mundo.
As indicações chegaram, a inédita Melhor filme entre elas. No meio do caminho havia uma pedra xenófoba: o “filme” Emilía Pérez. Não vou gastar muito tempo falando sobre aquele que deve ter sido o pior investimento do Netflix6 de todos os tempos. Por vários motivos, a candidatura de Humilha Tebes afundou e o caminho para o Brasil parecia aberto. Nanda implorou “por favor, a gente já ganhou em ser indicado. Não transformem isso em Copa do Mundo”. Ouvimos com atenção e transformamos em Copa do Mundo7 , com Nandinha no ataque.
Chegou o dia do Oscar. Depois do que pareceram nove horas de premiação, Penélope Cruz subiu ao palco para apresentar “Melhor Filme Internacional”. Quando Tortilha Fezes foi anunciando, minha casa foi tomada por vaias. Copa do Mundo, Nanda, sinto muito! O tempo parou por um segundo e a atriz espanhola anunciou: “I’m still here”. Eu só fui reagir horas depois. Chorei no banheiro por alguns minutos. (Eu) ainda estou aqui. Eles tentaram de tudo… mas a gente ainda está aqui.
A capitã fez vários gols, mas não foi eleita a melhor jogadora. Tudo bem, como boa capitã, ela levou a gente à vitória histórica. Vim trabalhar ainda aturdido pelo milagre que Nanda, Selton, Marcelo e Walter conjuraram. Eles derrotaram o lobby da Netflix e do cinema francês. O jogo foi duro, mas Nanda é adepta ao futebol arte e ao fair play. A gente queria a capitã premiada, mas derrotamos times mais fortes na casa deles8. Quem jogou bonito também foi a Letônia, o (maravilhoso) Flow venceu o (igualmente maravilhoso) Robô Selvagem e Divertidamente 2 e levou a taça de melhor filme de animação para casa. Me pergunto se uma certa atriz espanhola vai dizer que o Oscar virou uma festa Letã-brasileira.
Tiraram muito da gente. Ainda querem tirar mais: nossa camisa canarinho, nosso amor pelo Brasil, nosso patriotismo, nossa fé na terra de Machado e Pelé. Vão falhar, porque a verdadeira competência do Exército Brasileiro é a derrota. Nanda ainda está aqui. Rebecca Andrade ainda está aqui. Djamila Ribeiro ainda está aqui. Maurício de Souza ainda está aqui. Gil (e os Gilsons) ainda estão aqui. Jeferson Tenório ainda está aqui. E esse time, nem mil tanques derrotam.
O cinema da Retomada é um movimento que ocorreu de 1995-2002. Foi uma época que, por causa das políticas públicas democráticas, o cinema brasileiro voltou com tudo. Das nossas cinco indicações ao Oscar de melhor filme estrangeiro, três foram nessa época: o Quatrilho, O que é isso companheiro? e Central do Brasil. O filme que acaba com a Retomada é Cidade de Deus, que ironicamente foi indicado a quatro Oscars, mas não ao Oscar de melhor filme estrangeiro.
E olha que eu estou incluindo o “governo” Bolsonaro nessa conta
Nesse meio tempo, o Brasil foi indicado a seis Oscars em categorias menos glamourosas, como Documentário e Curta de Animação. Não estou sugerindo que essas indicações não são MUITO importantes, mas fazem menos barulho.
Muitas peças de propaganda evangélicas são comedias involuntárias, então os caras estão atendendo a duas fatias do mercado.
Gosto muito de ver a reação da Fernandona à premiação. Pouco antes de anunciarem o prêmio, Fernandona vê a imagem de Tilda na tela e diz: “Essa atriz é espetacular”. Não satisfeita em ser a mãe da nação e a maior atriz brasileira, Fernandona também tem classe.
E olha que estamos falando do estúdio que cometeu a série 365 dias.
Talvez a expressão “Copa do Mundo”seja ruim porque a gente não tem chances reais de ganhar uma copa desde 2006.
Não se enganem, Ervilha Reles é um filme dos EUA, com atores e dinheiro do país do Norte. De fato, vários países ajudaram a invocar esse tormento audiovisual: Espanha, França, EUA e, é claro, o Vale do Flegetonte, o sétimo círculo do inferno.